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domingo, 1 de agosto de 2010

Discurso de Formatura - Bacharel em Teologia

Discurso pronunciado no Culto de Ação de Graças pela colação do grau de Bacharel em Teologia no Seminário Teológico Batista do Nordeste - STBNe. Turma 2010.1.


Orador: Marcos Fellipe

 Não iremos iniciar aqui agora um discurso, vamos apenas dar voz a esse discurso que vem sendo dito há muitos anos. Em especial há 4 anos e meio quando a maioria de nós deixamos nossos lares, a companhia das pessoas que amamos, nossas queridas igrejas para atender um chamado, caminhar em direção a nossa vocação.

“Ao invés de tomar a palavra, gostaríamos de ser envolvidos por ela e levados bem além”. Sair do lugar comum das palavras que são ditas e adentrar no misterioso mundo das palavras que se dizem... E assim acompanhar essas vozes sem nome que nos precedem.(1)
 
Nessas linhas estão um pouco de nossas vidas, nossas conversas em salas de aula, nos corredores, nas mesas de estudos e outras mesas mais. Mas não somos os únicos autores deste.

Não há como não dividir a autoria deste discurso com vocês: família, amigos que são parte essencial da construção do que somos hoje.

Não há como não dividir deste discurso com aquelas pessoas com quem mais conversamos nestes anos, vivos e mortos que dividiram conosco sua sabedoria. Com os quais muitas vezes tivemos o prazer de passar noites inteiras conversando. Leonardo Boff, Foucault, Nietzsche, Rubem Alves (o tio de Cássio), Von Rad e Lutero, amigos de longas conversas com Percival e Luís, Elizabeth Fiorenza, parceira de Crícia, Paul Tillich, Ivone Gebara, a madrasta de Julinho, Emanuel Levinas. E principalmente Jesus de Nazaré ...

Não há como não dividir a autoria deste discurso com os pobres, com os marginalizados, com os excluídos, Essas pessoas que com a expressão dos seus rostos, e com as histórias de suas vidas nos desafiam a nos preparar para construir juntamente com eles uma realidade menos injusta... Que nos desafiam a ser voz dos sem-voz e sem vez...

E finalmente não há como não dividir a autoria deste com os nossos professores... Com estes tivemos conversas e lições incríveis.

Chegamos aqui cheios de certezas... "Tão convencidos estávamos nós dos caminhos que estávamos seguindo que nos matriculamos numa escola onde se ensina certezas e proibições, um seminário, porque o nosso desejo era conduzir as almas pelos caminhos que nós seguíamos." (2) Acreditávamos que encontraríamos professores que nos ensinaria como conduzí-las. Mas, que bom que estávamos errados. As primeiras lições que tivemos foi que a aprendizagem é também a habilidade de desaprender.

Concluímos rapidamente que Alberto Caeiro quando escreveu estes versos era certamente um calouro de Teologia:

Procuro despir-me do que aprendi,

Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram

E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos.

Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,

Desembrulhar-me e ser eu [...]

Isso exige um estudo profundo,

Uma aprendizagem de desaprender.

Nossos professores tentaram nos conduzir por esses perigosos caminhos do conhecimento. Vocês foram maravilhosos, muito importantes para cada um de nós, mas alguns de vocês foram surpreendentes.

Com orgulho somos Turma Jorge Luiz Nery, nome do nosso incansável professor que sempre acreditou em nosso potencial como estudantes. Sem tempo, sem recursos, sem apoio da direção, não foram poucas as mesas redondas, os mini-cursos, as viagens, atividades interdisciplinares, esforços que extrapolavam em muitos suas obrigações. Jorge! Você foi surpreendente.

Aletuza Leite que deu-nos a honra de ser nossa paraninfa, conseguiu nas poucas disciplinas que ministrou nos conquistar, rapidamente tínhamos mais que uma relação de professor-aluno, éramos amigos, e essa amizade nos proporcionou crescimento incrível. Seu jeito leve de viver, Sua teologia engajada e cheia de vida nos desafiou a sermos mais.

Lembro-me da primeira aula que tivemos com um outro desses incríveis professores, no lugar de nos ensinar verdades nos fez pensar, e ter dúvidas, nos ensinou que certezas são prisões, nos ensinou a perceber a beleza que há nas pequenas coisas, nos gestos simples. Mais do que filosofia nos ensinou a que a vida nunca é ponto final, "Viver é etecétara." (3) 

Quando conhecemos a figura, nos encantamos de cara, acreditávamos que ele nos conduziria a um novo caminho, ser discípulos radicais de Jesus Cristo. Mas o que lemos em seus olhos e em suas palavras foi que não há caminhos, “os caminhos se fazem ao caminhar”.

Sabiamos que ele não duraria muito tempo aqui, uma instituição construída sobre verdades e proibições não poderia suportar a presença de alguém que ensina dúvidas e liberdade. De quem estou falando turma??

Marcos Monteiro...

Em suas instigantes aulas de filosofia em que constantemente éramos desafiados a construir juntos o conhecimento, nos preparamos para adentrar no mundo do estudo da teologia, que já nos esperava.

Em todos esses anos que não estávamos na companhia de vocês, estivemos na companhia da história do Cristianismo, da Psicologia, da eclesiologia e do estudo sistemático e criterioso da Bíblia.

Aprendemos nas aulas de história do cristianismo que a história foi sempre escrita a partir dos vencedores, dos poderosos. Logo fomos desafiados a reler a história a partir dos menores, dos esquecidos, dos derrotados, dos oprimidos pelos sistemas de dominação.

Nas disciplinas de Bíblia aprendemos a ler os textos em sua línguas originais. Foram muitas noites em claro para aprender Grego e Hebraico. Aprendemos que toda leitura é uma interpretação que não há como alcançar a verdade dos textos, no máximo optar por alguma possibilidade responsável. Isso nos distanciou da pretensão da verdade e da vaidade do poder. Aprendemos que Deus escreveu apenas um livro: a vida. E a habilidade de manusear a Bíblia seria ferramenta indispensável para lermos a vida em seus inúmeros movimentos.(4)

Passamos também pelas disciplinas do campo da psicologia, mentoreamento eclesiologia e outras.

Fomos continuamente desafiados nas disciplinas de Teologia... Mas o que é Teologia? Estava conversando com Crícia em uma conhecida mesa de estudos, e ela relatou-me a acontecença. Perguntaram-lhe o que era isso em que ela iria se formar. O que é Teologia? Para que serve? O que vc vai fazer com isso?

Qual o instrumento de trabalho do teólogo? A do agricultor é a enchada com a qual ele ara a terra. Com o estetoscópio o médico examina os pacientes. O instrumento de trabalho do teólogo é A Palavra, com as palavras o teólogo constrói e destrói mundos. Ser teólogo é dominar a arte de criar e destruir mundos através das palavras.

O mundo do Antigo Testamento que era regido pelo Deus Tribal guerreiro de Israel o qual legitimava a guerra pela posse de Terras, a matança de crianças foi recriado pelos profetas que ousaram um mundo de justiça, onde Deus era Deus de todos.

Martin Luther King, através das palavras ajudou inúmeros negros norte americanos a lutar por um mundo mais justo, suas palavras até hoje ecoam e nos desafia a criar um mundo mais humano e igualitário.

Mas o maior criador e destruidor de mundos foi Jesus de Nazaré que a luz das escrituras, mas não escravizado por ela, em um mundo em que Deus era o Senhor, nos apresentou um Deus servo de todos e todas. Como menor de todos partilhou sua vida conosco. Desde que o filho do homem, estraçalhado e crucificado, ressuscitou dentre os mortos, se antecipou a definitiva libertação e se mostrou ineludivelmente que a vida é mais forte do que a morte e foi criado o mundo em que a utopia é mais real do que todos os realismos políticos e econômicos. Ser Teólogo é assim como Jesus, dominar a arte de criar e destruir mundos.

Ser teólogo é ser desafiado a fazer teologia em meio aos movimentos da vida, fazer teologia onde o Espírito está soprando, de dentro do Furacão.(5) Ser teólogo é responder ao escândalo da Reforma Agrária, é lutar pelo direito dos excluídos, é empoderar pelo poder da Palavra os desempoderados, os negros, os pobres, os homossexuais, as crianças, as mulheres.

Essa teologia nos desafia a ser pastores, a cuidar mais das pessoas e menos das instituições. Igrejas são pessoas. Pessoas que são massa humana, negadas como sujeitos históricos, sem consciência libertária e sem um projeto de futuro, massa sempre manipulada pelas ideologias das elites, com raríssimas exceções.

Fomos tentados durante o curso e certamente continuaremos sendo, a seguir pelos caminhos mais fáceis e cômodos Tentados a ser meros imitadores de mentes estéreis. Por muitas vezes optarmos em não seguir os caminhos comuns, já dantes traçados e por isso fomos apontados e rotulados. Mas em tudo tentamos ser nós mesmos, conservadores ou progressistas.

Fomos tentados a ser grandes enquanto Jesus nos desafia a ser os menores. Mas pela força do Espírito seremos os menores, servos de todos...

Para usar uma imagem muito usada no Seminário, em que há um fusquinha no caminho de um caminhão numa ladeira. Iremos optar sempre em ser os fusquinhas, por identificarmos este com o projeto do reino de Deus. O caminhão só transita nas grandes avenidas. Mas os movimentos da vida não se dá apenas nas grandes avenidas, mas nos becos, nas vielas, nas baixadas e nos morros, onde o grande caminhão não tem acesso. Ser cada vez menores.

Encerramos esse curso hoje com a alegria de ter desbravado caminhos, com a alegria de termos sido teologarte, com a alegria de termos sonhado e trabalhado por um curso melhor, com alegria de ter construído laços duradouros e deixado marcas. Com a alegria de termos sonhado juntos com uma Igreja que seja sinal e antecipação do reino de Deus, que é reino de justiça paz e alegria no Espírito Santo. Sonhar juntos nos fez irmãos e assim prosseguiremos.

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1 Paragrafo basedo no discurso da aula inaugural e Foucault no College de France.
2 Fragmento de um texto de Rubem Alves em uma homenagem a Richard Shaull.
3 Riobaldo em Grande Srtão Veredas.
4 Idéia muito comum de Carlos Mesteres.
5 Conceito chave de Richard Shaull em seu livro De dentro do Furacão.